quarta-feira, 1 de junho de 2011

Teologia e Ecumenismo: Uma Reflexão

Gostaria de começar este meu artigo esclarecendo algo muito importante para os estudantes de teologia: A teologia possui duas dimensões que a caracterizam exclusivamente, quais sejam, a dimensão científica e a dimensão reflexiva. Como ciência ela é totalmente experiencial, tem em Deus seu objeto de pesquisa, na igreja seu laboratório e na fé seu elemento de relação com seu objeto; como reflexão, a teologia é imparcial e se utiliza da razão para pensar o sagrado e sua relação com o não sagrado. De forma que, a teologia que faço, não é pretensiosamente doutrinária ou denominacional, mas científica e reflexiva. Desta maneira, como pesquisador da teologia, e em função das características apresentadas, vejo ser possível pensar teologicamente sobre quaisquer assuntos, inclusive sobre o ecumenismo, como categoria religiosa. Logo meu texto não tem a pretensão de reprovar ou defender o ecumenismo, mas de trazer informações que possam contribuir para uma reflexão crítica desse fenômeno religioso. Então, vamos ao texto!
O contexto latino americano, no campo teológico, é um terreno fértil para suas múltiplas reflexões. Tratando-se de um contexto onde há uma gama de necessidades urgentes a serem consideradas, como a pobreza, a discriminação, a violência e diversos outros fatores sociais, a religião se faz essencial na busca pelo resgate existencial do ser humano e pela valorização da vida nos seus amplos segmentos. Um dos maiores problemas existentes na busca por este objetivo, é a falta de cooperação e o sectarismo religioso nas diversas denominações, principalmente cristãs, instaladas neste contexto. Com o intuito de amenizar essas diferenças e promover uma ação conjunta, com o propósito de restabelecer a dignidade humana pela promoção dos valores do Reino, o ecumenismo se torna um dos caminhos com maior possibilidade de alcance nos resultados positivos desta tarefa. É importante, para se obter o máximo de adeptos a essa forma “moderna” de reflexão e ação teológica, esclarecer quais são seus objetivos e suas múltiplas frentes de trabalho disponíveis às nossas mãos. Neste sentido, é necessário refletir sobre o que é ecumenismo e quais são as suas dimensões neste vasto campo a se trabalhar, e é esta a intenção deste texto.

I. Ecumenismo e suas dimensões
Muito se fala sobre o ecumenismo. Para muitas pessoas, principalmente para aqueles que são fundamentalistas, essa expressão ressoa como algo agressivo, anti-bíblico, baseado num sincretismo demoníaco. Avaliando-se a etimologia do termo e a abrangência do seu significado, percebemos que não se trata de nenhuma forma de sincretismo e muito menos de demoníaco. O termo “ecumenismo” provém do grego oikoumene, que por sua vez deriva do verbo oikein (habitar). A literalidade de sua tradução traz a palavra “habitada”, relacionada a terra. Ou seja, oikoumene significa: “terra habitada”, pois em sua raiz encontra-se a palavra oikos (casa). Oikoumene tem a mesma origem etimológica de ecologia, economia, ecossistema e outras. Diz respeito à nossa casa que é o mundo, no qual habitamos. O termo possui não somente uma conotação religiosa, mas uma dimensão geográfica, política e cultural. Portanto, não é apropriado limitar o uso do termo “ecumênico” apenas à esfera religiosa da existência humana. De fato, a unidade dos seres humanos, das nações, de toda essa variedade que caracteriza o povo de Deus inclui a dimensão geográfica, a cultural e a política. É, portanto, algo que tem a ver com toda a riqueza da vida humana. É reconhecer que a vida particular pode ser e será enriquecida com a contribuição proveniente do encontro com outros povos que vivem em outras realidades materiais, que por isso mesmo têm outras culturas e que procuram organizar-se politicamente de acordo com suas tradições e condições existenciais particulares. No entanto, como já foi dito, atualmente o sentido mais comum da palavra “ecumênico”' é de ordem religiosa. Atualmente encontramos, no âmbito global, uma pluralidade imensa de denominações cristãs que professam e proclamam sua fé baseando-se no mesmo conteúdo: A Bíblia. Poderíamos dizer que, visto que usam a “mesma fé”' e o “mesmo conteúdo”, essas denominações vivam em comunhão umas com as outras. Todavia o que vemos na prática é exatamente o contrário, ou seja, cada vez mais essas mesmas denominações encontram-se divididas e fracionadas. Isso não é um problema recente, desde o princípio da história da Igreja vemos essa questão em diversos momentos, todavia, já nos primeiros séculos, através de seus concílios ecumênicos, a Igreja universal, era uma realidade, como nos escreve Brakemeier: Seus concílios eram de fato “ecumênicos”, e como tais são reconhecidos. São representativos de toda a cristandade e suas resoluções têm validade para as Igrejas em todo o mundo. Decorridos dois mil anos, porém, e após tantas divisões, a ecumene precisa ser restabelecida. É o que diz o termo “ecumenismo”. Identifica uma tarefa “moderna”. Embora não tenha equivalente bíblico exato, é de indiscutível legitimidade teológica. Expressa o esforço por recuperação da unidade visível da Igreja de Cristo. Ecumenismo pretende superar divisões, sanar feridas, e unir o povo cristão no cumprimento comum de sua missão.
II. A teologia bíblica como pressuposto ecumênico
Evidentemente que, dentro da teologia bíblica para o discurso ecumênico, o Antigo Testamento não pode fornecer elementos próprios desta tarefa, pois teologicamente é um problema que se desenvolve no Novo Testamento. Todavia, como um dos problemas do diálogo ecumênico, senão, o maior deles, é o perímetro da ação de Deus além das doutrinas institucionais, o Antigo Testamento nos revela que, desde o princípio da formação de Israel, Jeová já era adorado e agia por meio de outras civilizações. Coloca-se em discussão, então, se as concepções atuais de determinadas doutrinas sobre a esfera da ação divina, e suas supostas limitações, são válidas diante da teologia veterotestamentária. Segundo Antonius H. J. Gunnewger escreve: Israel se constituiu como povo e comunidade religiosa no antigo território de Canaã e em meio a grandes civilizações. Apesar de todas as diferenças nos pormenores, podem ser notadas certas estruturas básicas que permitem falar de uma religião e uma atitude oriental antiga diante da vida. (...) Na realidade, também a religião de Israel tem origem no antigo oriente, até mesmo quando ela discute com as religiões de Canaã e dos povos vizinhos, tomando distância delas. No âmbito das discussões da religião de Israel com as religiões de Canaã, encontra-se a absorção dos atributos divinos das religiões cananeias, a identificação dos deuses dos pais (Abraão, Isaque e Jacó) no posterior estágio de institucionalização e exclusividade divina de Israel por Jeová, como escreve Werner H. Schimdt: Durante a passagem para a sedentarização plena, os (semi)nômades equipararam seus deuses patriarcais às divindades El dos santuários da terra cultivada; já a identificação dos deuses dos pais com Javé, que ocorre, conforme uma tradição, quando da vocação de Moisés (Êx. 3:6, 13ss; 6: 2s; cf., no entanto Gn. 28:13; 32:10) representa um terceiro estágio no decurso da história da religião israelita. O nome “Javé” provém, a rigor, de uma área situada mais ao sul (Jz. 5:4s). Teria Javé deixado de expulsar os deuses dos santuários locais porque a tradição dos patriarcas já havia sido enriquecida por elementos cananeus? Em todo o caso, Javé segue usando os dois nomes tanto “Deus de Abraão”, quanto “El”. Apesar de Javé exigir exclusividade, a religião clânica e, em parte, o culto cananeu a El foram absorvidos pela fé de Israel. De certa forma, esses fatores nos fazem observar que a ação de Deus está muito além das concepções humanas doutrinais, abrindo-se para além das fronteiras institucionais, auxiliando-nos no entendimento da possibilidade de um diálogo ecumênico. No Novo Testamento, entretanto, a pressuposição básica da necessidade para esse diálogo encontra-se na unidade, que é a raiz do próprio ser da Igreja de Cristo. Justamente com a unidade, a santidade, a apostolicidade e a catolicidade, perfaz um de seus essenciais atributos. Algumas razões bíblicas sustentam essa necessidade e possibilidade. Em João 17:21, na oração sacerdotal, Jesus ora pelos seus discípulos “a fim de que todos sejam um”. Em João 10:14, entende-se que há somente um rebanho e um só pastor do rebanho. O apóstolo Paulo orienta aos efésios dizendo que “há um só corpo e um só Espírito (...) um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos” (Ef. 4:4s).
Uma característica peculiar no Novo Testamento é o que Brakemeier chama de pluralidade concêntrica. Esta pluralidade baseia-se na diversidade de testemunhos acerca dos escritos fundamentais da Igreja de Cristo, ou seja, tanto no Novo Testamento, bem como a Bíblia em seu todo, se reduz ao que ele chama de colcha de retalhos. Não um amontoado aleatório de textos religiosos, nem um ideal de pluralidade caótica. Todavia, o Novo Testamento tem um centro, um eixo gravitacional, um ponto referencial que é o próprio Jesus que mantém unida a variedade, é unidade na pluralidade centrada em Jesus Cristo, é pluralidade concêntrica. Esse foi um dos problemas enfrentados por Paulo na igreja de Corinto, quando ele faz analogia à estrutura do corpo humano e seus diversos membros. Só existe unidade porque há diversidade, pois o que é igual não tem condições de servir-se mutuamente. O partidarismo entre os cristãos de Corinto mereceu severas críticas por parte de Paulo. A diversidade torna-se riqueza enquanto se dispor a cooperar e enquanto se alicerça num consenso básico. A primeira cristandade proclamou Jesus Cristo como quem aproximou judeus e gregos, os de longe e os de perto, constituindo a família de Deus.

III. O movimento ecumênico moderno e sua prática atual
As sucessivas fragmentações da Igreja de Cristo no decorrer dos tempos, somado a isso, a globalização como consequência das conquistas tecnológicas, culminaram num esforço quase obrigatório, porém, necessário de um movimento ecumênico moderno. Referindo-se a esta fragmentação e necessidade ecumênica, Brakemeier escreve: É sinal de inconformidade com ela. De certa forma encerra o período confessional, isto é, o da divisão regional do mundo por “confissões”. A guerra dos trinta anos (1618- 1648) havia sido a última tentativa de estabelecer, pela força, a unidade da cristandade, tentativa esta que redundou em terrível fracasso. Desde então o norte era predominantemente protestante, o sul católico, o leste ortodoxo, o oeste anglicano e calvinista. Mas a internacionalização do mundo que ocorre no século XIX já não mais permite a separação geográfica das confissões. Faz com que colidam principalmente nas áreas missionárias da África e da Ásia. Surge daí importante impulso para o ecumenismo. Frente a esses novos desafios ecumênicos, as igrejas protestantes buscam comunhão com seus irmãos e irmãs espalhados pelo mundo afora com o intuito de conjugar o testemunho. Alguns exemplos são:
. 1967 – Organiza-se a Comunhão Anglicana
. 1875 – Cria-se a Aliança Mundial de Igrejas Reformadas
. 1881 – Juntam-se os metodistas na Conferência Ecumênica Metodista
. 1905 – Constitui-se a Federação Batista Mundial
. 1923 – É criada a Convenção Luterana Mundial

Esta forma de estrutura federativa criada pelos protestantes distingue-se da Igreja Católica Romana com sua estrutura planetária. Nesta estrutura, a Igreja Católica Romana proclama solenemente a infalibilidade papal e consagra assim o centralismo eclesiástico como decidida resposta aos avanços do pluralismo e individualismo da modernidade. Em contrapartida, os protestantes queriam mais do que simples associações confessionais. As instituições eclesiásticas, é verdade, ficaram inicialmente à margem das iniciativas. O protagonismo coube a pessoas leigas como o metodista John Mott e o anglicano Joseph Oldhan, ou a movimentos como a “Aliança Evangélica”, fundada em 1846 com o nome de “Liga Fraternal de Oração e Combate a Descrença”, a “Associação Cristã de Jovens”, fundada em 1855, e as “Sociedades Bíblicas”. Entidades como essas prepararam o ecumenismo, transpondo as tradicionais fronteiras denominacionais e promovendo a cooperação. Entretanto há outros motivos ecumênicos, além dos expostos. Como escreve Brakemeier: Destaca-se o problema da economia e da justiça social em meio ao capitalismo emergente. A pauperização de amplas camadas da população devido à exploração selvagem do trabalho, o êxodo rural, o crescimento do proletariado e da miséria nos centros urbanos sensibilizava as consciências e clamava por uma reação das Igrejas. O embate ideológico das forças restauradoras após a revolução francesa de 1789-94 e dos movimentos revolucionários a exemplo do comunismo de Karl Marx necessariamente provocava a fé cristã. Algo semelhante vale para o avanço do ateísmo dito científico num mundo progressivamente popular. As consequentes perdas para a fé eram motivos de inquietude não só de uma confissão ou de uma igreja. Sejam mencionadas, enfim, as ameaças à paz mediante exacerbado nacionalismo e militarismo nos países europeus que mais tarde, de fato, iriam detonar em horríveis banhos de sangue. Diante deste quadro, era notório o constrangimento que aplacava os cristãos e os animava a juntar forças e vozes, pois o evangelho exigia uma resposta comum da cristandade. Nestas circunstâncias, em 1910, a Conferência Internacional sobre Missões, um movimento ecumênico importante aconteceu em Edimburgo, na Escócia. Deste movimento, diversas organizações deram origem ao Conselho Mundial de Igrejas (CMI).Queira Deus que a via mais promissora seja a práxis, do serviço, da diaconia. A convicção tem longa história. Ainda ecoa na memória a já mencionada divisa dizendo que, enquanto a doutrina divide, a ação é que une. Não se busca a unidade mediante a reflexão e o acerto teológico, e sim mediante a ação, o engajamento comum em causas urgentes. E, com efeito, os desafios práticos têm natureza essencialmente ecumênica. Colocam-se todos da mesma maneira. A violência, a destruição ambiental, o desemprego e outros problemas semelhantes não se orientam por critérios confessionais ou religiosos. Atingem todos por igual, não fazendo distinção de acordo com o credo.
Conclusão
Diante de tantos desafios que o ecumenismo enfrenta, o maior deles ainda é a ênfase colocada pelas diversas denominações nas diferenças doutrinárias que as separam. Esquecem-se das urgentes necessidades humanas onde muitos não têm a possibilidade de, ainda, viver os valores de sua dignidade diante de Deus e da sociedade. Somente a unidade do corpo de Cristo pode mostrar a “luz no fim do túnel”, e promover meios de estabelecer o Reino de Deus que está acima de qualquer dogma ou doutrina. Os cristãos devem mostrar que estão dispostos a mudar as perspectivas atuais do mundo onde o individualismo e o pensamento capitalista sobrepõem à comunhão e a solidariedade das pessoas, e o único caminho é viver o amor incondicional genuíno através de alianças, unindo forças e vozes levantando bandeiras para promover justiça, igualdade, fraternidade, gratuidade, solidariedade. Pois só assim é que Cristo se mostrará ressuscitado e presente em seu meio.
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Referência Bibliográfica

BRAKEMEIER, Gottfried. Preservando a Unidade do Espírito no Vínculo da Paz. ASTE, São Paulo: 2004.

GUNNEWEG, Antonius H. J. Teologia Bíblica do Antigo Testamento: uma história da religião de Israel na perspectiva bíblico-teológica. Edições Loyola, São Paulo: 2005.

SCHIMDT, Werner. A fé do Antigo Testamento. Editora Sinodal. São Leopoldo: 2004.

SANTA ANA, Júlio H. Ecumenismo e Libertação: reflexão sobre a relação entre a unidade cristã e o Reino de Deus. Editora Vozes, Petrópolis: 1987.

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